sábado, 14 de setembro de 2013

Contexto

Os patos*



O peso do papel latejava inquieto em seu bolso, tão pesado, tão pesado. E como reconfortava. Domingo. Dia de Carne. Às vezes não tinha carne. Mas tem comida. Poucas certezas da vida. Passos rápidos, passos lúcidos. Pressa ansiosa. Passa de pressa para passar a prece do lar. Depois desta rua, da padaria do Joaquim e da feira. Da padaria do Joaquim e da feira. Da feira... Feira. Feira!   Frutas, pessoas, produtos. Ponderava em perder poucos períodos para um pequeno passeio.
A passos lentos e passos curiosos, observou detalhadamente aquele fenômeno magistral (e como era interessante), fixava a vista nas variadas opções oferecidas no evento de tantas cores -  verde, amarela, alaranjado, marrom, azul, roxo, preto e branco -  com recantos e cantos cantando incessantemente pelo descobrimento prestes a acontecer. Perfumes doces adocicados pelos incensos na barraca da cigana e também pelos legumes daquele velho agricultor sentado na caçamba de seu histórico caminhão, contudo são os ácidos à acre, quentes, sensuais, secretos, silenciosos e individuais que o instigam a adentrar nos misteriosos atrativos, buscar o incomum, o pitoresco, o exótico, e enlouquecer nesta procura inebriante até encontrar aquilo que sempre lhe falta.
Aqueles olhos, olhos de mercador, ávidos e afiados, o atraíram. Convidaram-no a sentar, perguntaram-no nome, profissão e idade – as duas últimas respostas surpreenderam tanto pelos anos, tanto pela ausência deles – ofertaram-no o vazio da alma, o feixe da lacuna (erma e errante). Era circular, arredondado, meio oval, esférico, envergado. Preto, azul e cinza – cores da areia – entrelaçavam-se em espirais concêntricas tortas e quebradas até a superfície brilhosa, revestida por um pouco de pequenas pedras esparsas de vidro e de calcário foscos. Peso de papel.
A nota em seu bolso torceu-se em desespero para sair e ser trocada pelo peso real. É tão bonito. Gosto de olhá-lo. Acho que Maria e as crianças também vão gostar. Pensava introspectivamente ocioso, enquanto indagava o preço. Todo o almoço. Mas era tão belo! Fixado e apaixonado, retira todo o alimento reunido em um mísero papel.

Vira-se exasperado correndo. Corrompido. Com medo. Correndo. Cáustico. Caótico. Correndo. Nestes mesmos instantes, os olhos agudos tornam-se em sorrisos de escárnio escorrendo de escória.  Lábios tão doces quantos seus olhos. Cruza o tempo e a porta ansiosamente esperançoso, crédulo cretino. Clamam por comida. Diz possuir algo melhor. Gritou por todos.  Em breves passos e finais de convocações, já se reunia a plenitude. Olhou a todos sorrindo. Retribuíram-lhe com avidez ardente. A mãos rápidas e trêmulas, reuniu algumas das cobranças, sobre a pequena mesa do conjugado cozinha-sala-quarto, em uma pilha retumbante, e posicionou o aparador sobre o centro desta. A visão calou o silêncio. Sentaram pelo sentimento. Calados. Comovidos. Constrangidos.  
Gustavo Minho
                                                     *O título é relacionado a obra de Dyonélio Machado

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